Por Nelson Travnik*
Há 420 anos, no dia 9 de fevereiro de 1600, uma
multidão se aglomerava no ‘Campo di Fiori’ (Campo de Flores) em Roma,
para assistir mais um espetáculo de um herege condenado a ser queimado
na fogueira pelo Tribunal da Santa Inquisição. Já era rotina em Roma e
em vários países da Europa, a Igreja fazer das fogueiras, instrumentos
de repressão e morte para condenados por bruxaria ou afrontar as
“verdades” bíblicas e dogmas da Igreja. A turba inquieta e agitada
aguardava as pilhas de lenha e gravetos serem acesas. Abre-se a porta e
surge o condenado com um aparato de ferro cobrindo a boca ensanguentada,
numa clara intenção dele não poder falar a multidão, o que poderia
trazer desconforto para os juízes que o condenaram. Porém antes disso,
exclamou aos que o cercavam : “Minha alma subirá ao Paraíso junto com a
fumaça do meu corpo”. A Inquisição funcionou de 1450 a 1750 e estima-se
que cerca de 60 mil vidas foram sacrificadas.
Quem era esse condenado, preso há 7 anos que
incomodava tanto a Igreja e que, com a coragem dos heróis, não se
retratou de suas idéias e convicções ? Era Giordano Bruno
nascido em 1550 na pequena cidade italiana de Nola, perto de Nápoles.
Seu nome de batismo era Felipe mais tarde mudado para Giordano quando
vestiu o hábito de clérigo no Convento Napolitano de São Domingos.
Depois de dez anos conventual, doutorou-se em Teologia em 1575. Nesse
período dedicou-se entre outras, a filosofia grega e a obra da teoria
heliocêntrica – Sol no centro do Sistema Solar – do cônego Nicolau
Copérnico, contrário a filosofia aristotélica tendo a Terra como centro
do universo e obra maior da criação defendida pela Igreja. Em 5 de março
de 1616, a obra foi considerada heresia e colocada no Índex dos livros
proibidos. Giordano passou a admitir a pluralidade dos mundos habitados e
a salvação do homem através de um relacionamento direto com Deus.
Deixou claro que a verdadeira religião prescinde de formalismos, rituais
e compromissos de filiar-se a esta ou aquela religião. O conjunto
dessas ideias eram inconcebíveis e condenadas pela Igreja. Com isso, sua
permanência no convento foi curta, afastando-se em face da perseguição e
intolerância sectarista dos seus membros. Abandonou as vestes
sacerdotais, foi processado por heresia mas conseguiu salvar-se fugindo
para Roma. A partir daí, sua vida foi uma constante peregrinação pelo
norte da Itália, Paris, Londres, outros países e indo para Genebra onde
aderiu ao Calvinismo com permanência curta nessa nova corrente
religiosa. Em maio de 1592 acabou por dar com os costados em Veneza,
hospedando-se na casa de João Moncenigo que o traiu, foi preso e
encaminhado ao Santo Oficio. De lá foi transferido para Roma onde passou
7 anos preso, submisso a exaustivos interrogatórios , aos horrores da
prisão e convivendo com gritos dilacerantes de pessoas torturadas.
Neste cenário, entre outras, o que mais incomodava a Igreja, era sua
idéia da pluralidade dos mundos habitados. Possibilidade de existir
outros mundos, outras formas de vida, outros pensamentos e outras
crenças. Na Grécia já se pensava nisso e na Escola de Epícuro (341 -271)
já se ensinava haver infinitos mundos parecidos com o nosso. O cardeal
Nikolaus de Cusa com anuência do papa Eugênio IV, sustentava a
pluralidade dos mundos habitados. Fascinado pela imensidão do universo
que a astronomia estava revelando e, que Deus, é imanente nesse universo
infinito, escreveu o livro : “Acerca do Infinito, do Universo e dos Mundos”.
Existe uma tradução portuguesa da Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa,
1978, do qual tenho um exemplar e onde está a relação das 38 obras de
Giordano. Para a Igreja, nele configurava-se uma heresia praticamente
indefensável . Giordano teve a coragem de sustentá-la abrindo as portas
para infinitas possibilidades humanas como a ideia de vidas sucessivas
como se vê em seu livro: “ Uma pessoa, quer esteja dentro ou fora do
corpo, nunca se completa. Ela tem a oportunidade de experimentar a vida
de muitas formas diferentes”. Sobre a pluralidade dos mundos habitados
escreveu : “Existe apenas um espaço cósmico, uma imensidão única e vasta
e nele existe uma infinidade de mundos como este que vivemos e
desenvolvemos”.
Após o martírio de Giordano, o tema voltaria a baila
em 1862 com a publicação do livro: “A Pluralidade dos Mundos Habitados”
do astrônomo francês Camille Flammarion (1842-1925)
provocando acirradas discussões. Com a descoberta dos exoplanetas,
planetas girando ao redor das estrelas, essas discussões já perderam o
sentido. Estimam-se que hajam muitos bilhões de planetas somente em
nossa Via Láctea com muitos deles na zona habitável podendo abrigar
vida. Giordano Bruno e Camille Flammarion, são os últimos arautos da
mais importante conquista da astronomia e talvez da humanidade : não
estamos sós no universo!
*Nelson Travnik é astrônomo, diretor do Observatório Astronômico de Piracicaba, SP, e Membro Titular da Sociedade Astronômica da França.
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