Nelson Travnik
Década
de 1920. Dois anos somente após a assinatura do armistício com o Tratado de
Versailles, impondo a Alemanha exorbitantes reparações de guerra. Os sons do ‘Charleston’
invadem os salões e os Ford ‘bigode’ inauguram os congestionamentos. No Brasil,
a cosmografia é parte do currículo escolar e a maioria das pessoas sabem que o
Sol é uma estrela e a Lua não tem luz própria. Não há TV, computador e nem
sequer o plástico. Em São Paulo, capital, um mapa da cidade mostra as
localizações do Observatório de São Paulo – mais meteorológico do que
astronômico – na Avenida Paulista nº 69 e o Observatório de São Bento no Alto
de Santana.
OBSERVATÓRIO
DE SÃO BENTO
A Ordem dos Beneditinos, resolve montar um
observatório astronômico e para isso importa á renomada firma alemã C. A.
Steinheil de Munique, uma luneta com objetiva de 175 mm e 2625 mm de distância
focal, equipada com micrometro filar, helioscópio de polarização e câmara
astrográfica, no valor de 6.000 Marcos-Ouro bem como uma cúpola com 5 m de
diâmetro com revestimento externo de cobre e interno de madeira, no valor de
5.000 Marcos-Ouro. A luneta e a cúpula chegam ao Brasil em recibo datado de
15/11/1921, em nome do Rev. Abade Miguel Kruse. Uma outra encomenda constante
de duas pêndulas astronômicas no valor de 1.756 Marcos-Ouro é feita à firma
alemã de Berlin, Strasser u. Rohde pelo também Abade Miguel Kruse. Elas chegam
ao Brasil em 03/05/1924 em nome de O. Ildefons Stehle. Tudo é cuidadosamente
montado em um prédio construído pela Ordem no Alto de Santana e denominado
Observatório de São Bento por volta de 1930. Um padre de nome D. Theodoro Kok
faz parte do projeto. As atividades do Observatório não são conhecidas, mas a
sua importância é refletida pela observação do eclipse lunar de 28/10/1939
mencionado pelo Dr. Alypio Lima de Oliveira
(1886-1956), diretor da Diretoria do Serviço
Meteorológico e Astronômico
do Estado de São Paulo e autor do projeto do novo
Observatório de São Paulo no Parque do Estado, bairro Água Funda. A utilização
da luneta Steinheil foi utilizada nesse eclipse pelo Observatório de São Paulo
em razão de que, sua luneta Carl Zeiss também com objetiva de 175 mm não estar
na época ainda instalado. Por volta de 1940 surge um imprevisto: o monge
responsável pelos trabalhos do Observatório, por razões insondáveis, abandona o
sacerdócio e abandona tudo. Desapontados pelo episódio e na falta de um
substituto à altura, a Ordem decide fechar o Observatório e transfere os
instrumentos para um galpão em Arujá. O belo Observatório de São Bento
precocemente chega ao fim.
OBSERVATÓRIO
ASTRONÔMICO BANDEIRANTE
Em 1951, um astrônomo amador e próspero comerciante na
capital, João Octavio Nebias, ciente do abandono dos instrumentos, procede a
compra de todo o patrimônio por Cr$50.000,00 (cinqüenta mil cruzeiros), segundo
depoimento prestado por ele ao astrônomo Paulo Marques dos Santos do IAG-USP. O
novo proprietário instala então em 1952 nos fundos de sua residência à então na
época, rua Estrada da Cantareira nº 3344, o seu Observatório Astronômico
Bandeirante que é registrado sob nº 267.514 na Empresa Mercúrio de Marcas e
Patentes Ltda., no dia 24/05/1954. Na instalação dos instrumentos recebeu
auxílio do insigne astrônomo Abraão de Morais (1917-1971) e do prof. A. Schutz.
O Dr. Alypio Leme de Oliveira é também um dos que visitam o Observatório
atestando assim a importância de suas instalações. Pouco se conhece sobre os
trabalhos do Observatório e, mais tarde, as luzes da cidade vão gradativamente
se aproximando do Observatório. É cogitada então a transferência do
Observatório para a Fazenda Bom Jardim da família. Para lá é levada a parte
óptica da luneta e acessórios. Mas João Octavio Nebias doente e em idade avançada
vem a falecer não vendo o projeto ser realizado.
OBSERVATÓRIO
ASTRONÔMICO DE PIRACICABA
Soube da existência do Observatório Bandeirante em
1986 graças ao colega do IAG-USP, Paulo Marques dos Santos. Por duas ocasiões
fui visitar o Observatório em companhia do colega de Americana, Guilherme
Grassmann. Àquela época encontramos o Observatório já desativado e seu
proprietário já bastante idoso. Em 1989 soubemos do seu falecimento. Segundo
sua esposa, todo o patrimônio do Observatório estava sob os cuidados do
herdeiro, José Octavio Nebias. Em contato com ele, adiantou disposto a vender
tudo uma vez que ninguém da família se interessava na utilização dos
instrumentos. Acertamos então um preço para a luneta cujo recibo é datado de
30/08/1991. Não fiquei sabendo do destino das duas pendulas astronômicas bem
como um cronometro de marinha adquirido posteriormente pelo proprietário. Na
ocasião, a aquisição do refrator só me foi possível com a venda de um terreno
que possuía na cidade de Matias Barbosa, MG, ode vivi de 1944 a 1976 e onde
havia fundado o Observatório Astronômico Flammarion (1954-76). Houve certa
relutância na venda da luneta pois ela estava atrelada a cúpula de 5 m e era
desejo vende-la junto com o mesmo. Não dispondo de mais recursos, prometi ao
Sr. José O. Nebias que iria encontrar um comprador para ela o que de fato
aconteceu com a implantação do Observatório Municipal de Diadema para o qual
foi vendida a Prefeitura e que se encontra lá até hoje. A primeira oportunidade
de instalação da luneta Steinheil foi para um projeto do Clube de Astronomia de
Vinhedo, CAV, presidido pelo físico e colega, Paulo Bedaque Sanches, visando a
construção de um observatório municipal naquela cidade. Levado ao prefeito José
Carlos Gasparini, o projeto foi encaminhado à Câmara Municipal e aprovado por
10 votos contra 4. Houve até escolha do terreno e lançamento da Pedra
Fundamental, mas logo tudo ficou esquecido. Mais tarde soubemos que haviam
utilizado o projeto do observatório para outras finalidades ... decerto lucrativas.
Mas ás vezes como muito bem diz o ditado, “não há nada como um dia depois do
outro”, no início de 1992, graças ao empenho da Associação dos Astrônomos
Amadores de Piracicaba, AAAP, e da ESALQ – USP em ceder o terreno, o prefeito
José Machado resolve construir o Observatório Astronômico de Piracicaba que é
inaugurado em 02/10/1992 contando com a luneta Steinheil, uma cúpola de 4.80 m
de diâmetro, biblioteca e material pedagógico por mim oferecidos. O
Observatório que viu seu nome ampliado para Observatório Astronômico de
Piracicaba Elias Salum, OAPES, homenageando assim seu fundador já falecido,
completou em 2017, 25 anos de atividades ininterruptas com uma invejável folha de
serviços prestados as escolas, população, turismo bem como trabalhos científicos.
A luneta Steinheil, exemplo notável de mecânica fina com óptica excepcional,
único dessa marca e porte no País, leva o nome de João
Octavio Nebias e do seu Observatório Astronômico Bandeirante.
Referências:
SANTOS, Paulo Marques. IAG - Memória sobre sua Formação e
Evolução, Editora Eduasp, USP,2005
TRAVNIK, Nelson Alberto Soares. Uma Luneta Única no Brasil,
Uranometria Nova, SP, 28/01/2008
TRAVNIK, Nelson Alberto Soares. A História Desdobrada do Observatório
de São Bento, revista Astronomy Brasil, 2007.
Nelson
Travnik, é astrônomo responsável pelo OAPES e Membro Titular da Sociedade
Astronômica da França.
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